quinta-feira, 8 de maio de 2014

Manual para morrer em paz


Sempre me pergunto se estou pronta pra morrer. Se tenho medo da morte. A resposta é sempre não e sim.
Eu acho que ninguém está preparado para morrer. E no meu caso além de tudo morro de medo da morte. Mas, se morro de medo, já estarei morta mesmo.
Apavora a hipótese de não estar aqui, de não viver mais em carne e osso. Não ter problemas, desejos, vontades, estar com pessoas que eu amo, fazer falta para meu filho.
Mas, comecei a pensar diferente sobre esse assunto depois de um certo domingo.
Foi num domingo desses de março passado que fui almoçar uma mariscada em Santos na casa dos tios do Fernando, meu namorado. O Almoço já prometido há tempos tinha um propósito.
Pegar os copos de whisky de cristal colorido que o pai do Fernando deu aos seus tios de presente.
Infelizmente o pai do Fernando faleceu subitamente de infarto ano passado e desde então sua Tia Regina achou por carinho e direito de herança que ele deveria ficar com os copos de cristal nunca usados.
Fomos então para o almoço em família e para pegar os copos justamente no dia do aniversário do pai do Fernando. Acho que estarmos todos reunidos para um almoço na casa de tios tão queridos, foi uma forma de lembrar e homenagear com carinho o Duilio, pai do Fernando.
Chegando lá observei o apartamento que tem quase 100 anos e que fica num prédio muito simpático. Fiquei encantada com tudo e com o lustre de louça pintado a mão. Pensei no tempo das coisas e das pessoas. Um objeto pode ter 100 anos quase sem nenhuma avaria se bem conservado, mas, nós gente, com o passar do tempo ficamos avariados de muitas maneiras. Sentados em volta da mesa de jantar, bebericando e petiscando, conversamos animadamente. Inclusive sobre a morte.
Num dado momento o tio do Fernando, Sr.Luiz Vinagre que apesar de senhor não tem nada de velho, conhecido e chamado apenas de Vinagre, pegou de uma das gavetas de uma cômoda um "manuscrito", e me mostrou todo orgulhoso como deseja que as coisas sejam quando ele morrer.
Vinagre é um homem que se não existisse deveria ser inventado. E inventando por mãos boas, cabeças inteligentes, espíritos alegres e gente com um coração grande.
Ele é um sujeito ímpar! Que só faz par com a vida, a alegria e com a Regina, tia do Fernando. Ele é apaixonado pela vida, sendo assim, à trata como todo bom conquistador, com paixão! Ele galanteia a vida. É um homem alegre, moderno, feliz e com mil histórias pra contar.
Alguém que no mínimo vale a pena se sentar numa mesa, tomar uma bebida da preferência da companhia e bater um bom papo.
Bem, voltando ao "manuscrito" do Vinagre. Esse manuscrito é um relato digitado e atualizado de 3 em 3 meses sobre seus desejos de vivo quando estiver morto.
Neles estão contidos com que roupa ele quer ser enterrado, quem deve ser avisado com nome e telefone, suas dívidas que tem a importante observação "não pagar ninguém" afinal, o devedor não poderá mais ser cobrado.  
Tem também seus créditos na praça, senhas, seus possíveis pepinos a serem resolvidos pela família.
Justificou a importância de atualizar o manuscrito periodicamente, pois, a cada dia a lista de quem deve ser avisado aumenta. Mais uma prova do quanto ele é querido e amigo de todo mundo.
Ele lê sem sofrimento ou constrangimento alguns trechos para mim. Cita a obrigação da filha mais velha, Luciana, de servir uma rodada de whisky para todos os presentes no velório.
Quando pergunto qual whisky ele quer que sirva? Ele diz: "sei lá vocês que vão beber, eu estarei morto e não vou ter dor de cabeça se for ruim" e solta sua inconfundível risada.
Parece tétrico, mas, ele leva tudo numa boa, faz graça e se diverte com o assunto e a situação.
Ele acrescenta que queria gravar um vídeo para passar no velório, mas, foi terminantemente proibido de fazer isso pela família.
Vinagre acha tudo normal, e de fato é. Só é incomum a sua capacidade leve de lidar com isso.
No fundo ele deseja que tudo seja uma festa, com alegria e bons sentimentos.
Errado? Acho que de forma alguma.
Pra mim isso significa que ele pensa assim: Vim, vi, vivi, aprendi, evolui, errei, pequei, gostei, amei, odiei, sonhei, realizei, fui feliz e agora posso ir em paz.
E é justamente isso que eu gosto "ir em paz". Sabe aquela sensação de missão cumprida com êxito, é isso.
Como é bom poder chegar ao céu, ou em qualquer lugar que exista depois daqui, prestar contas e ficar numa boa com a consciência.
Hoje a morte é encarada de forma até mais prática. Existem empresas de seguro que vendem o seguro funerário. Tem para todos os gostos e bolsos.
Para nós parece até coisa de mau agouro pagar pelo próprio funeral, mas, pode ser só um jeito de morrer em paz sem dar trabalho pra ninguém na hora H.
Não vai demorar muito e teremos lista de convidados para os velórios com RSVP (RSVP, é a abreviatura de Répondez S'il Vous Plaît, expressão francesa que significa "Responda por favor") confirmando a presença como num grande evento. Acho que pra celebridades como presidentes, pop star, já existe isso.
O Vinagre não sabe quando e nem como vai morrer. Nenhum de nós sabemos. E não saber nesse caso é melhor para todos.
Pra que antecipar sofrimento?! Se soubéssemos não daríamos conta.
Esse manuscrito do Vinagre, que também pode ser considerado um testamento informal me fez pensar que até para morrer temos que ter certa organização.
Mesmo sendo dos assuntos mais desagradáveis que existe é importante conversar a respeito, escrever talvez, como gostaria que tudo fosse. Pode ser menos dolorido para quem fica saber o que fazer e de que jeito fazer.
É literalmente e popularmente "a vontade do morto" sendo feita.
Aoki Shinmon, escritor e poeta que trabalhou como nõkanshi (embalsamador, agente funerário japonês) autor do best-seller no qual o filme A Partida- Okuribito foi baseado, escreveu que antigamente os japoneses faleciam rodeados por seus familiares e eram colocados nos caixões por seus parentes de sangue. Ele disse: “O velório era celebrado como um último período de convivência com a pessoa que faleceu”.  Portanto, um momento de muito respeito, sentimento e cumprindo as vontades da pessoa que se foi. Não era um momento feliz propriamente dito, mas, um momento de despedida, amor e perdão. Hoje sabemos que aqui e até no Japão pessoas sem qualquer intimidade, afeto e história com o falecido é que fazem esse procedimento de arrumar e colocar no caixão. Às vezes sem o menor cuidado, sentimento e consideração. Virou um processo estéril e automatizado. Como se depois de morta a pessoa perdesse todo seu valor.
Sendo que mais do que nascer o ato de morrer é a transição final, é o renascer evoluído.
Mahashta Mûrasi, um sapateiro da Índia com 179 anos diz:"A morte esqueceu-se de mim". Não sei se viver tanto é bom. Mas, esse é meu desejo com relação a todos que amo, que a morte se esqueça deles e os deixe aqui por muito tempo, ou só o tempo de serem felizes como escolheram ser. E quando for a hora de cada um que seja feita sua vontade.
No mais vida longa ao Rei. Vida longa ao Vinagre. 


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Marcela Moretto

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Uma mulher, uma menina, uma criança...tentando aprender.