quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Cama


Hoje cedo esticando o lençol, fiquei parada olhando pra ela, a nossa cama.
Já tivemos mais intimidade, eu e ela, ela e nós.
Hoje apenas nos olhamos caladas.
Lembrei de quando compramos a cama. Essa mesma que acabei de arrumar e que está na nossa vida há 26 anos.
Você na loja olhava pra ela desconfiado. Checava se era forte, se o estrado era reforçado, se os parafusos eram ferragens boas e principalmente se cabia no bolso.
Eu só falava: “Quero essa! É linda! Igual da novela!”
Saímos da loja repletos de felicidade e com um carnê de 12 parcelas que levava boa parte do seu pequeno salário.
Depois de exatos 15 dias úteis, o caminhão da loja para em frente do portão e buzina.
A cama chega. Chegou ainda na casa dos meus pais e tomou espaço na garagem apertada.
Meu pai disse:“vocês precisam casar logo, isso vai acabar riscando o meu carro”.
Um ano se passa e a gente se casa.
Na nossa casa tinha pouco. Pouco espaço, pouca coisa, mas muita cama.
Na primeira noite só dormimos nela. A vontade de pular, mexer e remexer na cama era muita e a falta de experiência também. Enfim, dormimos.
Na noite seguinte pudemos colocar em prática toda experiência adquirida. Eu com a minha excelente professora, a Glórinha, minha amiga e vizinha e você com seus camaradas da fábrica.
Nessa noite foi totalmente diferente. Na cama teve calor, teve axé! Daí por diante a cama virou também o sofá, a pia da cozinha, a mesa da sala, o tapete do corredor, qualquer lugar era cama.
O tempo foi passando, a vontade foi passando.
O tempo é ingrato, briga lado á lado com a rotina, e leva com ele o desejo.
Lembra quando você vivia me chamando de nomes obscenos? Adorava ser a vagabunda, a sem vergonha, a safada, a ordinária. Mas só na cama.
Na cama a gente se resolveu muitas vezes. Mas ainda não tínhamos resolvido ter o Pedro.
Sem resolver nada, ainda pagando a casa e alguns carnês, ainda esticando o seu salário até o fim do mês, vem o Pedro.
O Pedro chega e você vai pro sofá. Ele dorme na cama comigo alguns meses, até eu ganhar confiança.
A rotina muda. Levantava todas  as noites e na beira da cama dava o peito. Foi um tempo assim, o suficiente pro Pedro andar descalço, não ter gripe, nem dor de garganta...crescer.
A vida estava justa, no limite da régua. Meio a contra gosto começo a trabalhar. Na cama corrigia as provas da minha turma da 3ª série.
Foi sentado na cama, assustado, frágil e chorando, que você me deu a notícia que havia sido mandado embora do trabalho, depois de 10 anos de chão de fábrica.
Depois de 3 meses sem emprego, te flagrei ajoelhado na beira da cama pedindo o novo trabalho pra Santa. Nesses 3 meses que você ficou parado, em casa o dia todo, não teve cama e nem supérfluo. Mas tivemos um ao outro.
O emprego vem e a vida melhora muito. Pensamos até em trocar de cama.
No entanto, preferimos conhecer o Rio de Janeiro. Depois de quatro noites dormindo num hotel três estrelas em Ipanema, sentimos falta da nossa cama.
O tempo foi passando, a vontade foi passando.
De vez enquanto comprava uma lingerie nova com a D. Mara, aquela senhora que vende Demillus. Você gostava quando ela passava em casa, porque a noite na cama tinha novidade.
Hoje ela continua passando, mas é na cozinha que tem novidade.
Você se engraçou com a Marlene, aquela ordinária que teve cama com o bairro todo, e eu expulso você da nossa cama.
Fico sozinha naquela cama gelada chorando. Passo á ir pra cama cheirosa, arrumada e penso nos atores da novela. Ali deitei com muitos.  Inclusive com o Vittório, o verdureiro. Pena foi só na fantasia.
Resolvo te perdoar, mas não esquecer e você volta pra cama.
Tudo fica diferente  e indiferente. Apenas dois corpos. Corpos pesados, largados. Dois corpos duros, tensos com medo de se tocar de novo.
Com o tempo passa e tudo volta ao normal.
A cama vai esfriando, só esquenta quando tem uma ocasião especial. Festa de casamento, churrasco, jantar na casa dos amigos, na noite de Natal.
 Sempre temos cama na noite de Natal. Vai ver esse é o presente.
Isso acontece com todo mundo imagino eu. Porque esses dias a Beth, me contou que só tem cama quando tem batizado. Virou fetiche.Disse que vive torcendo pra alguma conhecida engravidar. Alguma conhecida católica.
O tempo foi passando, a vontade foi passando e a vida melhorando.
Você começou a viajar muito á trabalho. Quando você viajava na ida e na volta tinha cama. Era uma cama com saudade, vontade, verdade e um T bem grandão.
Hoje quando você vai e volta tem beijo na testa.
Basta você fechar a porta e ir pro aeroporto pra eu chamar o Agenor pra nossa cama.
Ele ronca como você, mas você não late como ele, ainda. Ele sabe quando você vai, porque abana pó rabo de alegria e pede pra subir na cama.
Eu deixo. Deixo mesmo. Porque ele me faz companhia, me escuta, me cobre de afeto.
Na frente dele não apago a luz pra colocar a camisola. Não tenho vergonha do corpo, e nem de ser rejeitada por causa da cicatriz que ficou no meu peito depois daquela doença que não gosto de falar o nome.
A vida continua.
Talvez por isso o sofá virou sua cama de vez. E quando eu brigo com você e peço pra vir pra cama, você acha que eu estou sentindo sua falta. Mas, eu só não quero que seu corpo gordo e espalhado deforme o sofá novo comprado á vista.
Você olha pra nossa cama com desprezo, nojo até. Tomara seja porque ela me roubou de você aos poucos, e não porque você arrumou uma outra Marlene na sua vida.
Agora olhando a nossa cama, penso que ela é somente um móvel velho, fora de moda, com alguns defeitos, sem muito uso.
São nas reuniões de apoio que vou toda semana, que eu luto pra sair dessa cama e não parecer tanto com ela, a nossa cama.

4 comentários:

Tiago Moralles at: 19 de abril de 2012 às 17:58 disse...

Da crônica pro conto.

bact_08 at: 19 de abril de 2012 às 19:15 disse...

Adorei, Marcela! Seus textos são ótimos! PARABÉNS!!!

Marcela Moretto at: 20 de abril de 2012 às 05:17 disse...

Ti...
fiquei com vontade..rs
mas nada se compara há vc.
beijos

Marcela Moretto at: 20 de abril de 2012 às 05:18 disse...

Bac_8

obrigada por ler e comentar.

Abraço.

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Uma mulher, uma menina, uma criança...tentando aprender.