quinta-feira, 1 de março de 2012

A neta do defunto


Meu pai veio de Portugal de navio com 17 anos. Desde então perdeu totalmente contato com meu avô, o pai dele.
Acho que nunca foram próximos, já que quando meu avô ficou viúvo, casou-se de novo com uma portuguesa e deixou os filhos com a ex-sogra. Meu pai, e a única irmã, foram criados pela avó materna.
Eis que um dia meu pai recebeu um telefonema da irmã dizendo que o meu avó havia falecido.
Meu pai ficou triste, mas nada fez.
Depois de anos passados, meu pai recebeu outro telefonema do tio dele que mora na Venezuela, país que meu avô morava também, dizendo que meu avô havia falecido.
Eu sei o que você está pensando. Mas, ele já não havia morrido? Pois é. Não sei a razão, mas essa última era a morte verdadeira, autêntica, digna de dor e sofrimento.
Meu pai ficou triste pela segunda vez. Mas dessa vez fez algo.
Decidiu que iria até a Venezuela enterrar e reencontrar o pai depois de 30 anos. Comprou duas passagens e lá fomos nós, eu e ele, enterrar meu avô português.
Apesar do motivo ser triste, não posso deixar de dizer que  a viagem foi uma das coisas mais divertidas que fizemos juntos.
Meu pai demonstrou calma no avião. Reparou e ficou indignado com a senhora ao seu lado que preferiu dormir a jantar. Com certeza a senhora tinha intolerância a comida ruim, com sabor artificial, e um pouco de soberba também.
Meus tios de alguns graus, foram nos buscar no aeroporto. Queríamos ir para um hotel, mas, insistiram para ficarmos na casa deles. Ficamos. Nos trataram bem, mas, era incômodo.
No dia seguinte foi o velório e o enterro. Na igreja minhas tias, prima, senhoras e a viúva do meu avô, mostraram que tinham experiência com velório, porque foi um choro só. Uma lamentação, um sofrimento coletivo e performático luso venezuelano.
Eu e meu pai estávamos um pouco perdidos. Nos apresentavam assim: “essa é a neta e o filho do defunto. Vieram do Brasil só para o enterro”.
Esse “vieram do Brasil só para o enterro” entenda não querem herança, espólio, nada. Só enterrar o morto.
Foi uma sensação estranha estar ali só para isso. Porque não havia mais que respeito e consideração. Outros sentimentos como amor, apego, carinho, saudade, intimidade não existiam. Sabemos que esses sentimentos são fruto da convivência, da relação que se estabelece com o outro e nesse caso essa relação era nula.
Eu fui colocar uma flor no caixão. Fiquei olhando o meu avô. Tentando ver nele algum traço meu, tentei reconhecê-lo. Mas pra mim ele era um morto estranho.
Olhei pra ele e disse mentalmente: “vô não sei quem você é. Vim pelo meu pai, que inclusive você não fez muita questão de conviver. Pena. Porque ele é um cara incrível, e um pai maravilhoso. Ah! você também não conheceu seus netos. Eu, e meus irmãos diga-se de passagem somos pessoas encantadoras (não ia ficar falando dos nossos defeitos né). Só vim dizer descanse em paz”.
Ele não abriu a boca, não usou nenhum argumento, não pediu desculpas, nada. Nem me olhou.
Melhor assim, afinal, ele estava morto.
Lamentei a falta de intimidade, a falta da dor da perda que não senti.
Nunca perguntei ao meu pai porque ele quis ir até lá. Mas sei que foi importante pra ele.
Ainda ficamos alguns dias por lá. E até meu pai sucumbiu a vaidade e fez umas comprinhas. Meus tios devem ter dito: “só vieram aqui pra passear e fazer compras”.
Na volta, no aeroporto, ficamos numa área VIP do cartão de crédito. Nessa área exclusiva, chegou uma banda de música. Pareciam famosos, mas só na Venezuela porque não reconheci ninguém.
Então, falei pro meu pai “vamos pegar um autógrafo?”. E meu pai respondeu espontaneamente: “TE TUECAS!” (traduzindo: "se toca!") no espanhol mais vagabundo e chulo que já ouvi. Caímos na gargalhada!
A viagem foi cheia de detalhes engraçados, apesar da fatalidade.
No Brasil respiramos o ar de missão cumprida. Meu pai, acho que ficou melhor por ter ido ao enterro do meu avô, mesmo que na vida um ao outro haviam sido ausentes.
Eu concluí mais uma vez que amor, é sentimento que deve ser cultivado, alimentado, nutrido. Pode até se amar á distância, mas precisa conhecer, se envolver e querer.
Meu pai está aqui, sendo avô do meu filho. Eles brigam, conversam as suas diferenças de idade, ás vezes se toleram, outras se gostam. Mas meu pai está presente! sendo pai e avô, e isso faz toda diferença quando a questão é amor.

2 comentários:

Waldir Mello at: 1 de março de 2012 às 16:42 disse...

Um conto,uma cronica,um belo texto, quando leio Marcela Moretto, fico me perguntando, onde ví tal estilo? Machado...ou talvez, Camus, um toque de Lya, mas voce é intimista, peculiar,é muito leve e flui.Me lembra talvez,Flaubert, mas ainda fico com o mestre Machado, apenas com elegancia, a marca indelével da mais nova integrante de uma novissima safra de brilhantes escritores, e que com certeza estarão autografando na proxima FLIP.Torço por isso.Desculpe, hoje analisei (!) apenas a forma.Parabens e beijos!

Marcela Moretto at: 2 de março de 2012 às 05:53 disse...

Waldir..

Me sinto tão honrada com seu comentário, com sua análise. Me sinto pequena no meio de gente tão grande.
Muito obrigada!! Vc me fez pensar numa coisa... qual é o meu estilo??? como eu escrevo??? e acho que vc está certo sou um pouco mistura, mas sou muito eu mesma, minha verdade, meu pouco conhecimento, meu jeito de falar das coisas. Queria que um dia muita gente conhecesse meu jeito de dizer as coisas, de escrever... quem sabe?!rs
Beijos

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